sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Projecto

Grotesco e Performance na fotografia de retrato

A arte da performance relaciona-se na sua origem com eventos carnavalescos medievais, rituais com características grotescas associados aos ciclos da natureza, ao calendário religioso e aos processos de metamorfose. O carnaval é o espectáculo do acaso, onde actores e espectadores se confundem e todos participam. Este é um período de extravagâncias que antecede a quaresma onde se celebra a liberdade e a renovação. O crítico russo Mikhail Bakthin relaciona estas irreverentes cerimónias de carnaval com o grotesco visceral relatado na história do século XVI acerca dos dois gigantes Gargantua e Pantagruel, de François Rabelais[i]. Este grotesco carnavalesco remete para uma segunda vida que está fora do quotidiano, onde o homem medieval se recria através de um espelho deformativo e onde se mistura o sagrado e o profano. Uma visão menos positiva deste carnaval medieval é a de Wolfgang Kayser, segundo a qual o grotesco é a expressão da angústia criada pela luta entre o bem e o mal, de onde sobressaem as figuras do bestiário e do diabólico, eminente no imaginário medieval de Bosch.

The grotesque instills fear of life rather than death. Structurally, it presupposes that the categories which apply to our world view become inapplicable.[ii]

O conceito de grotesco vem no seguimento de uma descoberta feita no final do século XV aquando numas escavações foi encontrado o palácio de férias do imperador Nero, conhecido como Domus Aurea, profusamente decorado com temas fantasmagóricos e fusões de fauna e flora, sendo este hibridismo uma característica por excelência do grotesco:

Thus the ruins of perfection are the origin of vital hybridities, mutation, and cross-fertilization – the source of hitherto unseen combinations of familiar forms. Thus the breakdown of previously established order provides the armature for rearranging its components; and from that process the shape of provisional new order emerges.[iii]

Segundo Robert Storr, o nosso presente é, de alguma forma, eminentemente grotesco. Este autor refere-se a Diane Arbus e à sua obsessão por freaks e explica-nos o processo psicológico que justifica esta atracção que não é exclusiva de Arbus. Diz-nos ainda, que para ser grotesco uma coisa tem que entrar em conflito com outra qualquer, ainda que invisível:

That conflict must in some fashion already exist within the mind of the beholder such that confusion stems not only form the anomaly to which we bear witness in the world, but the anomaly that is revealed within us.[iv]

Esta fantasia ou distorção da realidade pode ser consubstanciada na arte e é, de facto, um dos principais temas da arte moderna.

Durante a primeira guerra, no início do século XX, vários artistas europeus deslocam-se para os Estados Unidos da América, sobretudo para Nova Iorque, onde nasce um novo centro artístico em volta do MoMa e do Guggenheim e onde muitos críticos e historiadores emigrantes europeus integram as universidades, promovendo o surgimento de novas escolas como a Bauhause, em Chicago, com um carácter introdutório ao conceito de Avant-Garde e ao experimentalismo, que se vai reflectir essencialmente na dança, no teatro e na música. Segundo Gunter Berghaus, este êxodo transporta um conhecimento e talentos que deixaram marcas nas gerações futuras. Depois da guerra os próprios europeus sofrem influências de Nova Iorque e o regresso dos Modernistas traz uma proposta de libertação das artes e de ruptura com as convenções e poderes sociais e políticos instituídos. De uma forma geral todos os movimentos artísticos do século XX - os Futuristas, os Dadaístas, os Surrealistas - caracterizam-se pelo hibridismo e performatividade e expõem o seu ideário através de um manifesto que propõe uma ruptura com uma ordem anteriormente instituída[v]:

The Avant-Gard advocated rupture, revolution and destruction as vehicles of liberation; it employed transgression an shock as means of bringing about innovation; it never advocated the transitory death of art as an necessary therapeutic measure.

Mais tarde, em meados do século, o conceito de Obra de Arte Total de Wagner é reinterpretado pelos pós-modernistas que dispõem de uma série de novas tecnologias que integram no processo de criação artística. O conceito de híbrido deixa de ser figurativo para caracterizar um movimento emergente realizado pela conjugação de várias artes, como a música, o teatro, a pintura, o vídeo, a fotografia, etc.

Interessa-nos ter presente este percurso, mesmo que sintetizado, para percebermos de que forma é integrada a fotografia neste contexto.

A fotografia teve um processo irreverente no que respeita à sua aceitação no meio da arte. A sua relação com o referente e a sua objectividade colocavam-na mais próximo da documentação do que de um registo artístico. No entanto, a fotografia de retrato foi entendida desde o início como uma prioridade principalmente para as classes burguesas emergentes do século XIX, independentemente de corresponder a um registo mais artístico ou não. Estes retratos, por diversas razões - desde dificuldades técnicas, a ideais mais conceptuais da arte contemporânea - são deveras encenados e representados. Para Roland Barthes, esta encenação é de alguma forma influenciada pelo teatro[vi]:

Photography is a kind of primitive theatre, a kind of tableau vivant.

Peggy Phelan[vii] reforça esta ideia dizendo que toda a fotografia de retrato é fundamentalmente performativa: o retratado representa ou performatiza um personagem qualquer ou pode ser uma reinterpretação dele próprio. A fotografia de retrato de forma mais ou menos grotesca, explora características psicológicas invisíveis ou traços de personalidade que se pretendem evidenciar. Vários fotógrafos como Nicholas Nixon, Malcolm Morley, William Wegman, Joel-Peter Witkin, Duane Michals, Laurie Anderson, Diane Arbus, Robert Mapplethorpe, Cindy Sherman, Sophie Calle, Sally Man e Helena Almeida, exploram a sua performatividade perante a câmara. Por outro lado, numa forma mais conceptual, os artistas Ana Borralho e João Galante ensaiam uma performance que parece colocar várias de questões relativas ao quotidiano e à rotina do retrato fotográfico, colocando-nos a todos como performers perante uma câmara fotográfica.

Outras questões, como o constrangimento perante a câmara, a impossibilidade de representação do real, o auto-retrato ou a auto-representação, serão observadas partindo do exemplo da performance Untitle Still, deste último par de artistas, bem como da análise do trabalho dos artistas anteriormente citados. Assim, pretende-se deixar em aberto o tema da performance na fotografia de retrato para um ensaio a realizar a posteriori.


[i] STORR, Robert, Disparities & Deformations: Our Grotesque, in Catálogo da Bienal de Santa Fé, 2004, pág. 26.

[ii] KAYSER, Wolfgang, The Grotesque in Art and Literature, Indiana University, 1963, pág. 185.

[iii] STORR, Robert, Disparities & Deformations: Our Grotesque, in Catálogo da Bienal de Santa Fé, 2004, pág. 14.

[iv] STORR, Robert, Disparities & Deformations: Our Grotesque, in Catálogo da Bienal de Santa Fé, 2004, pág.16.

[v] BERGHAUS, Günter, Avant-garde performance: live events and electronic technologies, New York, Palgrave Macmillan, 2005, pág. 16

[vi] BARTHES, Roland, Camera Lucida: reflections on photography, London, Vintage Books, 2000, pág. 88

[vii] PHELAN, Peggy, Unmarked: the politics of performance, London, Routledge, 2006, pág. 35.


Sara Magno

Sem comentários:

Enviar um comentário