terça-feira, 6 de julho de 2010

LISBOA














MARTINS, Costa, PALLA, Victor, Lisboa “Cidade Triste e Alegre”, Pierre Von Kleist Editions, 2009 (1ª ed. 1959).


O livro Lisboa, Cidade Triste e Alegre reúne um conjunto de fotografias de Victor Palla e Costa Martins, que pretende ser um retrato da cidade Lisboa. Editado em 1959, este trabalho evidencia particularidades que não se repetem em nenhum outro, quer na sua contextualização nacional e internacional, quer colocando-o em paralelo com outros photobooks.


Na década de 50, Victor Palla e Costa Martins são dois estudantes de arquitectura em Belas Artes que têm uma paixão comum para além da sua área de estudos e do design: a fotografia. Decidem fazer um livro sobre a cidade de Lisboa, “mas que não mostrasse a cidade dos postais – o castelo de S. Jorge, o Rossio ou os monumentos – mas sim a cidade real, acerca das pessoas – uma cidade que não é necessariamente bonita; a Lisboa das ruas escuras, de pessoas mal vestidas, de Alfama, dos becos, a parte suja, os pobres, e não necessariamente o lado oficial ou das pessoas importantes”, referiu Palla anos mais tarde.
Ora, esta era precisamente a imagem oposta à que o regime totalitarista de Salazar queria que fosse revelada da capital de Portugal. O clima no País em 1958, ano em que decidiram fazer o livro, era de obsessivo controlo e censura dos meios de comunicação e opressão das livres ideias e esta visão de uma cidade vulgar, proletária e pobre, não seria propriamente a ideal “aldeia da roupa branca” que o Secretariado de Informação Nacional tanto se esforçava por promover. Porém, apesar da censura, chegavam por portas travessas à endinheirada elite intelectual que se manteve em Portugal, influências do estrangeiro: por um lado, o movimento existencialista Rive Gauche e, por outro, a sua derivação americana, a Beat Generation. Estas seriam, sem dúvida, fortes referências para Palla e Martins, em paralelo com as influências de Le Corbusier, um dos mais importantes e ecléticos arquitectos do século XX.

Do mesmo modo, Palla e Martins tiveram possivelmente acesso a um número significativo dos photobooks produzidos no pós-guerra na Europa e nos EUA. De Paris, chega o manifesto Momento Decisivo, de Cartier-Bresson, e outros que, quase como que numa reacção contrária àquele, procuram os momentos indecisivos, o stream of consciousness: o acaso. Nesta linha viriam, também de Paris, mais dois livros: New York, de William Klein, e Les Américains, de Robert Frank, “visões altamente pessoais, quixotescas e dinâmicas da cultura contemporânea dos anos 50.” Ambos os trabalhos assinalavam uma mudança na atitude do fotógrafo - uma atitude menos reflectida sobre o mundo que o rodeava e mais marcada pela sua própria experiência, tendo sido ambos rejeitados pela sua subjectividade extrema nos EUA e publicados pela primeira vez em Paris.

Apesar do seu estilo livre, não se pode considerar que Lisboa é um livro stream of consciousness, pois os próprios autores evitam esse tipo de subjectividade. No entanto, existe uma forte identificação com o estilo apresentado na exposição The Family of Man, que teve curadoria de Edward Steichen, em 1955, no MoMa, de Nova Iorque. Esta exposição, apresentada em vários países da Europa, nunca chegou a Portugal, tendo-nos apenas chegado o seu catálogo - 503 fotografias de 273 fotógrafos de 68 países que foram seleccionadas entre quase 2 milhões de imagens de fotógrafos, tanto famosos e como anónimos. The Family of Man documenta a essência e unicidade do Homem no mundo e fomenta o espírito de grande família e de paz que se acredita ser possível conquistar após uma intervenção bem sucedida dos EUA na II Grande Guerra. O que é de facto importante na exposição e que vai definitivamente influenciar e tornar tão particular Lisboa é o grafismo: os vários formatos, as sobreposições, a disposição e a relação das e entre imagens.

Lisboa tem um grafismo exuberante – esta apreciação tem por base a recente edição de Pierre von Kleist, de 2009, que se mantém praticamente fiel à versão original, respeitando a sua primeira paginação - que foi a principal chave de sucesso do livro. As meias páginas, as duplas páginas, os encartes, a colocação do texto, tudo está pensado ao pormenor e cria um ritmo de leitura estimulante.

Outro factor de sucesso, encontra-se no próprio texto. Lisboa possui poemas inéditos de Alexandre O´Neill, Armindo Rodrigues, David Mourão-Ferreira, Eugénio de Andrade, Jorge de Sena, José Gomes Ferreira e um texto de José Rodrigues Miguéis, cuja análise e relação com as imagens se constituem de tal modo complexas que seria despropositada a sua abordagem neste contexto.

No final do livro somos brindados pelo mais detalhado índice da história dos photobooks, em que os autores não só nos dão a informação exacta de todas as características técnicas da fotografia (a máquina e a lente usadas para determinada fotografia, o tipo de película e a abertura e a velocidade com que foi capturada), como nos descrevem a emoção, aquilo que lhes passou pela alma e cabeça, no exacto momento em que foi dado o disparo: “(…) a ternura, a ternura pura e simples. Tínhamos mais fotografias desse casalinho encantador à sombra da camioneta de carreira – e não foi com frio desprendimento que se disparou a máquina (Leica com Wollensack 90mm, Tri-X, 1/50 a f.4), nem indiferença clínica que o negativo foi escolhido, ampliado, enquadrado e inserido nesta sequência. É humana essa ternura; e são humanos o entusiasmo, a excitação, a impaciência pelos resultados; (…). Mas a melhor solução para este problema – humanização da tarefa de utilizar sistematicamente um instrumento mecânico como o fotográfico – talvez possa ser a de Eisenstaedt: «Todo o profissional deveria permanecer, no fundo do coração, um eterno amador.»” (índice)

Existe ainda, na nova edição do livro, um suplemento onde podemos encontrar uma tradução inglesa do índice e um texto de Gerry Badger* (autor de The Photobook: A History), que refere um aspecto do livro que é de salientar: a dualidade temática. Esta é recorrente nos photobooks do pós-guerra, como o Lisboa, e normalmente faz uso do contraste entre o velho e o novo. Em Lisboa, essa dualidade aparece logo no título: Cidade Triste e Alegre. Crianças, idosos, varinas, mulheres, namorados são pessoas tristes e alegres. Lisboa tem muito da fotografia documental dos anos cinquenta e na época em que foi publicado pretendia opor-se ao vácuo pictórico da fotografia oficial portuguesa. Este acto subversivo passou despercebido também por a sua primeira edição ter sido feita em sete fascículos.

No início da década de oitenta, na galeria Ether, uma exposição intitulada Lisboa e Tejo e Tudo, comissariada por António Sena, reanima o livro com uma segunda edição que teve grande circulação no estrangeiro – de facto, esta seria não uma verdadeira segunda edição mas, antes, uma diferente versão, dado que se compilou pela primeira vez todo o seu conteúdo. Com a presente edição, o livro renasce e volta a estar acessível nas livrarias, pois a anterior, com quase trinta anos é muito rara, uma vez que teve uma tiragem de apenas 200 exemplares.


*BADGER, Garry, “Cidade das Sete Colinas” in Lisboa “Cidade Triste e Alegre”, Pierre Von Kleist Editions, 2009.
Sara Magno
História da Fotografia
ar.co
Nível II

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