segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Performance na Fotografia de Retrato

Trabalho desenvolvido no âmbito da disciplina de Metamorfoses do Espectáculo com a Prof. Cláudia Madeira no Mestrado de Comunicação e Arte – 201011
Sara Magno


Nota introdutória
A multidisciplinaridade das artes performativas é continuamente instigada pelas novas tecnologias. Se originalmente eram o corpo, a relação com o público e o inesperado as principais componentes da acção performativa, com o tempo tornou-se constante a incorporação de todas as expressões artísticas - entre as quais a fotografia. No entanto, pela ambiguidade característica da fotografia, esta não se expressa de uma única forma dentro da performance artística[i]. Neste contexto, podem identificar-se quatro tipos de manifestações, sendo estas: a documental, a criação de um objecto fotográfico como consequência de uma acção performativa, a performance na fotografia de retrato e a aplicação do conceito do quotidiano fotográfico enquanto objecto performativo. Serão estes os assuntos abordados adiante no presente ensaio.

Contextualização histórica
Na década de 1960, uma das mais significantes tendências artísticas era a de contrariar a natureza comercial do mercado da arte, através de expressões artísticas de carácter cada vez mais temporário, transitório ou efémero, o que provocava uma tensão interessante entre a arte conceptual e o próprio mercado da arte dependente de um objecto artístico. A performance, pela sua postura radical, foi muitas vezes utilizada em momentos de ruptura de tradições com escolas ou movimentos artísticos. O seu carácter manifestamente dissidente colocava-a na vanguarda da vanguarda. Os primeiros movimentos de carácter performativo eram constituídos por poetas, escritores e pintores que pretendiam agitar e escandalizar os espectadores, colocando em causa o quotidiano e a tradição. Já o célebre manifesto futurista de Marinetti, surgido em 1909, era exactamente isso - um ataque aos valores estabelecidos das academias. No entanto, este era mais uma expressão de propaganda do que uma produção performativa efectiva. Mas cedo aparecem outros, como o Manifesto do teatro de variedades e Piedgrotta, de Francesco Cangiullo, com instruções acerca de “como realizar uma performance”[ii], onde eram incluídas a música e a dança. O próprio conceito wagneriano de Obra de Arte Total é reinterpretado pelos pós-modernistas que dispõem, no seu tempo, de novas tecnologias que integram no processo da criação artística. Daí ser uma das principais características da performance a multidisciplinaridade ou o hibridismo relativamente ao recurso a várias expressões artísticas, como a música, a dança, o teatro, a pintura, etc. Assim, enquanto arte de vanguarda, a performance sempre se aliou e cresceu paralelamente com recurso às novas tecnologias - a fotografia, o vídeo, televisão, multimédia e, mais recentemente, a internet.

1. Fotografia Documental
Para a performance, a fotografia foi um primeiro aliado que possibilitava a criação de um documento, ao mesmo tempo que salvaguardava o projecto criativo e preservava a memória do acontecimento. Mas rapidamente se tornou um objecto comercializável, o que foi, de certa forma, uma contradição que trazia algumas vantagens. A questão central da documentação de performances é a complexidade da relação entre o performer e o fotógrafo. Esta relação muitas vezes altera a sensibilidade de ambos. Devido à subjectividade própria da fotografia e da perspectiva de quem está a fotografar, o compromisso de documentar é muitas vezes posto em causa, pois pode facilmente deturpar o conteúdo da performance. Os performers pretendiam controlar a imagem que era passada do seu trabalho e de tal forma isto era importante que criavam uma forte relação de confiança com o fotógrafo, dando lugar a colaborações mantidas durante muito tempo. É o caso de Gina Pane[iii], que trabalhou com a mesma fotógrafa, Françoise Masson, durante dez anos Anexo 1 . Estas relações de confiança, de comprometimento e de cumplicidade tornam-se mais evidentes nas performances que integram uma certa componente de risco, como por exemplo, a performance de Chris Burden, intitulada Shot[iv] Anexo 2 . Nesta, Burden propõe-se ser alvejado por um atirador, enquanto o fotógrafo Alfred Lutjeans capta a acção. É a fotografia neste caso que vem personificar o momento, pois vem relatar o acontecimento e sintetizar a acção do performer. Neste sentido, a fotografia, que tinha um estatuto fundamentalmente documental a todos os níveis, ao relacionar-se com as artes performativas, aproxima-se, também, do campo das artes e da actividade dos museus quando neles se expõe para representar a obra de arte efémera[v][vi].

2. O objecto fotográfico como consequência de uma acção performativa
O conceito de performance sempre esteve associado às artes cénicas, à ideia de encenação e de representação. Desta forma, outras técnicas artísticas aproximam-se pela afinidade no tipo de linguagem. Para Margarida Medeiros, esta relação torna-se clara quando a possibilidade de construir cenários, como se de instantes da vida se tratasse, veio mostrar como a fotografia é, também, um dispositivo propício à reinvenção de papéis[vii]. A relação entre fotografia e performance torna-se mais estreita quando o próprio performer a usa como objecto de auto-representação. Nesse processo, o artista que domina a prática fotográfica volta a câmara para si e encena uma acção cujo resultado é dado a conhecer ao público apenas pelo meio fotográfico. O caso mais bem sucedido de auto-representação é o de Cindy Sherman, que inicialmente ganhou reconhecimento pela série a preto e branco de movie stills Anexo 3 . No seu percurso, há variações no que respeita ao formato – do pequeno formato a preto e branco passou para representações em grande formato a cores - mas mantêm-se como protagonista nas suas fotografias. Como um actor, ela representa uma personagem, criando a ilusão de continuidade, ou seja, como se aquela imagem fosse a captação de um momento de um filme, por exemplo. O mais surpreendente no trabalho de Cindy Sherman é a síntese narrativa cingida em cada fotografia. A recriação de cenários e personagens pressupõe uma produção performativa, que é a priori o elemento que relaciona toda a obra de Sherman. É o aparato que precede o momento do disparo da máquina que o público apenas pode intuir. A acção inerente ao acto performativo encontra-se vedada ao observador e manifesta-se exclusivamente no resultado fotográfico – é desta forma que a sua obra deve ser relacionada com tradição performativa.
Sherman usa a sua própria imagem para representar modelos femininos associados à cultura contemporânea Ocidental – de estrelas de cinema a donas de casa, até à própria morte, ela encena ou performatiza, o que poderiam ser as suas próprias experiências. No final da década de 1980, dedica-se a uma série de terror em que a sua imagem se torna cada vez mais difícil de encontrar e, segundo Peggy Phelan, há uma tendência para a distorção:
No seu trabalho, Sherman, recusa usar outros como um espelho. De uma forma quase canibalesca no seu apetite, ela propositadamente distorce a sua própria imagem para ver o lado social da construção dessa imagem e o modo como ela facilmente se reproduz[viii].
Este período de anulação é revertido no seu trabalho Retratos Históricos, em que vai reconfigurar a clássica questão da pintura versus fotografia. Tal como na série de film stills, onde fazia referência a realizadores como Godard e Hitchcok, agora vai procurar recriar situações semelhantes a pinturas históricas e as suas referências são pintores como Holbein, Goya e Ingres. Nas suas auto-representações encontramos o que Jacques Derrida menciona como sendo a “retórica da pose” ou o “infinito processo de suplantação que é constituído pela representação e pela fragmentação do eu”[ix]. Isto quer dizer que há um abismo em qualquer tentativa de representação que afasta o real da sua imagem. Esta questão torna-se mais evidente quando se trata de fotografia em detrimento da pintura pois, enquanto documento realista, a fotografia foi entendida desde a sua descoberta como uma possível aliada da verdade. Mas, desde que os surrealistas começaram a fazer experiências com a câmara, a fotografia começou a ser vista mais como uma perversão da realidade, como um truque ou uma mentira.
É claramente com o intuito ficcional que Sherman usa a fotografia. De acordo com Stephen Melville, citado por Henry Sayre no texto The Rhetoric of the Pose, Sherman “representa a própria ideia de representatividade”[x]. Cada fotografia é outra coisa para além daquilo que se propõe representar e que fica confinado aos seus limites. Estamos perante retratos não canónicos e sem qualquer sentido psicológico que procure um referencial em si próprio. No entanto, Sherman usa o dispositivo de reconhecimento com o cinema ou a pintura de uma forma quase apropriativa. Esse sentido apropriativo está associado ao aumento das pulsões de morte[xi] que caracteriza a modernidade e que motiva a exposição compulsiva do auto-retrato.

3. A performance na fotografia de retrato
As fotografias de Nicholas Nixon integradas na exposição Mirrors and Windows, exibidas no Museu de Arte Moderna, em Nova Iorque, em 1978, colocam várias questões relativas à fotografia e ao retrato enquanto performance. O projecto consiste em fotografar a sua mulher com as três irmãs uma vez por ano Anexo 4 , todos os anos. À primeira vista reconhecemos rapidamente o tipo de fotografia. Existem milhares como estas nos álbuns de família. São-nos tão familiares que julgamos saber tudo acerca delas. Nada mais podemos acrescentar, a não ser que não partilhamos da mesma intimidade das pessoas que vivenciaram o momento em foi tirada, pois só fazem sentido nesse contexto. No entanto, se estas nos parecem familiares e triviais, elas são deveras ensaiadas, apresentando uma realidade construída de forma a parecer isso mesmo: natural.
As questões que imediatamente se impõem são, pois: Qual a importância destas fotografias num museu? Que relevância pode ter esta aparente prática privada para uma audiência pública? No fundo, qual é o seu valor expositivo?
Walter Benjamin, no ensaio A obra de arte na época da sua possibilidade de reprodução técnica, menciona o valor de culto e o valor expositivo da fotografia de retrato:
Não é por acaso que o retrato ocupa uma posição central nos começos da história da fotografia. É no culto da recordação de entes queridos distantes ou desaparecidos que o valor de culto do quadro encontra o seu último refúgio. É na expressão fugaz de um rosto humano nas fotografias antigas que a aura acena pela última vez. É isto que lhe dá a sua beleza melancólica e incomparável. Mas quando o ser humano desaparece da fotografia, o valor de exposição revela-se pela primeira vez superior ao de culto.[xii]
Entendemos que o valor de culto privado da fotografia de retrato suplanta o seu valor expositivo, permanecendo a dúvida relativa à opção de Szarkowski, director daquele museu, de integrar esta série numa retrospectiva da produção fotográfica americana desde 1960. No ensaio anteriormente citado, Henry Sayre, procura um sentido para estas fotografias e chama a atenção para a forma como as mesmas “revelam o poder estético do vernacular”[xiii]. A questão é tão profunda como o urinol de Duchamp - retirar um objecto do quotidiano e colocá-lo num local extraordinário como um museu pode alterar o seu significado. Perde-se o sentido privado da narrativa quando a fotografia é exposta ao público e torna-se evidente o carácter objectivo e documental da fotografia. Contudo, Nixon, tal como um performer que pretende provocar o público pondo em causa o quotidiano e a tradição, questiona a rotina e o próprio valor do retrato de família. Ao colocar em evidência um costume, torna-o estranho, singular, altera a sua perspectiva habitual e confere-lhe novos significados. Ao contrário do teatro, em que mais frequentemente se recriam situações do quotidiano, no museu, estas fotografias tornam-se um espelho, uma metáfora à integração da fotografia na vida e na cultura contemporânea. Dentro desse universo, a fotografia é habitualmente usada como um auxiliar de memória e pretende mostrar a vida tal como a vemos, como uma verdade objectiva, ignorando a distorção inerente às capacidades do engenho. O retrato, para além do seu círculo familiar, tem um interesse essencialmente documental. No entanto, as implicações psicológicas que estão na origem da experiência da fotografia de retrato são deveras curiosas, e estão intimamente relacionadas com a mais evidente característica do retrato, que é a pose. Para Roland Barthes:
Assim que me sinto observado pela lente, tudo muda: eu considero-me num processo de ´pose`, instantaneamente crio outro corpo para mim, transformo-me progressivamente em imagem. (…) À frente da lente, eu sou ao mesmo tempo: aquele que penso que sou, aquele que pretendo que os outros pensem que sou, aquele que o fotógrafo pensa que sou e aquele que o fotógrafo faz uso para exibir a sua arte.[xiv]
Este testemunho, representa a complexidade e importância da pose para a fotografia de retrato. De certa forma, podemos intuir que há um constrangimento natural perante a câmara fotográfica. Esse constrangimento é causado pelo conhecimento ou consciência de que, no momento em que a máquina dispara, será retida uma imagem que irá representar e definir o carácter da pessoa. Ou seja, a ideia de que a nossa imagem, tal como a vemos perante um espelho, se pode tornar transportável, prevalecer para além de nós e aparecer perante uma audiência desconhecida cria uma tensão perante a presença da máquina fotográfica. Esta tensão invoca um comportamento referencial à postura usada na pintura de retrato, comportamento esse que é por si só um acto performativo inconsciente. Segundo Peggy Phelan, toda a fotografia de retrato é fundamentalmente performativa[xv], e a propósito, Phelan cita Roland Barthes, a fotografia é uma espécie de teatro primitivo, uma espécie de tela viva.[xvi]
De certa forma, este acto inconsciente de transformação, que qualquer pessoa de imediato assume na presença da máquina, pode encontrar um paralelo no campo das ciências, mais propriamente na mecânica quântica. Segundo o princípio da incerteza de Heisenberg, qualquer partícula na natureza altera o seu comportamento quando submetida a um instrumento de observação. A analogia que se pretende fazer é a comparação da máquina fotográfica com um instrumento, alterando o comportamento do objecto observado.
Estas questões comportamentais são abordadas por Freud na sua Introdução ao Narcisismo. Segundo o autor, citado por Margarida Medeiros, as tendências instintivas libidinosas sucumbem a uma repressão patogénica quando entram em conflito com as representações éticas e culturais do indivíduo, esta representação implica a formação de um eu ideal, relativamente ao qual o indivíduo constantemente se compara[xvii]. A presença virtual de um espectador provoca a própria performatividade na fotografia, pois é em sua função que a imagem é produzida.
Podemos concluir que a presença de um acto performativo na obra de Nixon remete-a para o domínio da arte conceptual, logo, como esta, é necessariamente subliminar. Desde a encenação de uma fotografia de forma a imprimir-lhe naturalidade, à questão de colocar em evidência um assunto do quotidiano e a ter implícito o princípio performativo inconsciente que precede toda a prática do retrato, esta obra relaciona-se desta forma com vários dos princípios enunciados nas artes performativas.


4. O quotidiano fotográfico enquanto objecto performativo
A reflexão sobre o conceito de pose é partilhada por muito autores e manifestada de formas variadas no campo das artes. Paradoxalmente oposta à obra de Nixon encontra-se a performance Untitle Still. Life, da dupla de performers Ana Borralho e João Galante, com a colaboração de Rui Catalão Anexo 5 . Untitle vem, de certa forma, dar continuidade a um tema recorrente nas performances daqueles artistas, que dão particular enfoque ao corpo, ao espaço e à relação com o público. Esta é uma performance que está estruturada de forma a incentivar uma participação activa da assistência. O trabalho consiste no convite à audiência para integrar um processo que se inicia com a convocação para uma fotografia de grupo junto de um sofá que representa o espaço da acção da peça. A partir desse momento, a performance progride numa sequência mais ou menos aleatória, construída entre os performers e o público, a partir da pose perante a câmara fotográfica, criando o que lembra um álbum de família. Existe uma total fusão entre público e espectador que se vai revezando no desenrolar da peça. A “história” ou as situações transformam-se e são incentivadas pela envolvente sonora, gerando uma permanente construção da acção que se intensifica até ao fim da performance. A acção é evocada pelo quadro construído pelas pessoas e pelas relações que se criam espontaneamente entre elas. Estas relações podem ser apenas um olhar ou um toque, mas induzem uma narrativa sem texto e na própria ausência de movimento. Em cada composição, reconhecem-se traços das fotografias que habitam os convencionais álbuns de família. Os gestos tornam-se cada vez mais lentos e a relação com o tempo da fotografia expande-se. A presença da máquina suscita tensão e alimenta o suspense que aumenta a cada disparo, o resultado destas fotografias é eternamente desconhecido. A máquina representa o fulcro do espaço cénico. Antes dela sabemos que estão os espectadores, depois dela, a cena. A sua presença causa constrangimento àqueles que posam perante ela. Atrás da câmara a postura volta ao normal, há menos tensão. Este constrangimento diante da câmara anteriormente referido na obra de Nixon é uma causa natural da consciência que cada um possui das potencialidades da própria câmara. Numa situação inesperada pede-se para tirar uma fotografia e é interessante ver a alteração de comportamento, tanto do lado do espectador como do lado de quem está diante da câmara. De facto, rapidamente aprontamo-nos para parecer aquilo que queremos representar, o que irá prevalecer para além do momento, do presente. Comparecendo num momento exactamente antes da imagem, estendendo esse período que, inconscientemente, está confinado a um segundo, revela-se o âmago da performance: a presença da rotina no palco. É um comportamento que se tornou um costume social preponderante na actual cultura ocidental. Não existe um momento verdadeiramente importante em que não esteja presente uma máquina fotográfica, quanto mais não seja a de um telemóvel. Criando um enfoque nesta rotina, a performance nos leva a pensar. Segundo Rui Catalão, é objectivando a nossa presença, a nossa nudez, o nosso estar perante o outro, incluímos a fotografia, ou melhor ainda, a pose fotográfica e com ela uma certa ideia de realidade legada ao futuro[xviii].
Este é um exemplo de uma performance com fotografia mas sem objecto fotográfico. A presença da máquina é crucial, a composição cénica é concebida para ser entendida tal como se vê uma fotografia. No entanto, ela não existe a não ser enquanto conceito, sendo a abstracção de uma experiência que é profundamente performativa e que se torna mais evidente no contexto do retrato. Nesta abstracção vemos também uma crítica à superficialidade da imagem fotográfica que apinha o mundo de subjectividade. Pela distorção de perspectiva, indução do foco e recriação de relações - como é o caso dos participantes desta performance, os quais não se conhecem mas que perante a câmara representam uma família - a imagem fotográfica, que tem uma ligação indicial com realidade, perde credibilidade. Ou seja a fotografia é superficial, pois não revela a verdadeira natureza do que representa. Num trecho de Borrowed Dogs, citado por Peggy Phelan, o assunto é abordado da seguinte forma:
Retrato é performance e, como qualquer performance, tendo em conta os seus efeitos, é boa ou má, natural ou não natural. Eu consigo entender o constrangimento causado por esta ideia – de que todos os retratos são performances – porque parece implícito um certo artifício que implica uma verdade acerca de quem é fotografado. Mas não é tudo. A questão é que não se consegue chegar à coisa em si, à verdadeira natureza da pessoa que se deixa fotografar, ao desconstruir o que está à superfície. Pois, a superfície é tudo o que é possível. Só se pode alcançar o que está para além da superfície trabalhando essa mesma superfície. Tudo o que se pode fazer é manipular essa superfície - o gesto, o traje, a expressão – radical e correctamente.[xix].
O gesto, neste caso, é a síntese narrativa de uma personalidade - poderíamos, eventualmente, num outro trabalho abordar este assunto tendo em conta uma perspectiva iconológica. Por agora, interessa perceber que o gesto contem o acto performativo em si, ou seja, ele contem essa capacidade de síntese que cada pessoa possui no momento em que se pretende auto-representar. No entanto, na fotografia o gesto é sempre superficial e, tal como na psicanálise, existe uma clivagem entre o Eu e o inconsciente que torna impossível uma coincidência na percepção do Eu com a sua representação. O carácter performativo da fotografia está contido na crença ou ilusão de que é possível nessa acção transformar a sua existência.
Na performance de Ana Borralho e João Galante é evocada a suspensão da vida, aquele momento imediatamente antes do disparo da máquina fotográfica separa a materialidade e finitude do corpo da eterna representação de nós próprios, ainda que seja superficial e subjectivamente.
A representação fotográfica é inseparável da sua transformação.[xx]

Conclusão
A performance serviu-se da fotografia e vice-versa, várias vezes e de diferentes formas. São ambas criações de uma cultura contemporânea e possuem no seu íntimo o objectivo de representar ou reinterpretar o mundo. Existem várias características no acto fotográfico comparáveis à performance, desde a movimentação do fotógrafo procurando o ângulo ideal para o enquadramento de um assunto, à produção que é realizada antes da concretização da fotografia. Neste trabalho reconhecem-se quatro aproximações entre a fotografia e a performance: primeiro, por questões práticas, a fotografia que documenta uma performance envolve sobretudo uma relação de confiança entre os performers e o fotógrafo, principalmente quando as performances incluem alguma componente de risco. Se por vezes a fotografia serviu para documentar a performance, outras houve em que a própria performance é o objecto fotográfico. É o caso de Cindy Sherman, que encontrou na fotografia o veículo para a sua actividade performativa, mas também dos casos de Robert Mapplethorpe, Sophie Calle ou Helena Almeida. Os temas podem divergir mas o processo que promove a convergência da fotografia e da performance é sensivelmente o mesmo. Para Nicholas Nixon e para a dupla Ana Borralho e João Galante, o sentido que se cria entre a fotografia de retrato e a performance abrange um nível mais conceptual, pois reflectem acerca da própria natureza do acto performativo que precede o encontro com a máquina fotográfica e o que isso significa para a cultura contemporânea. Ambos reinterpretam a rotina fotográfica, trazem-na até ao público e, colocando-a em evidência, revelam as suas particularidades. Ao reconstruírem a pose fotográfica, estão também a reflectir sobre ela. O que é a pose? O que nos leva a alterar o nosso comportamento na presença de uma máquina fotográfica? Que rotina é esta e de que forma ela altera ou condiciona uma cultura que tende a ser cada vez mais iconográfica?
Existe algo que relaciona a fotografia com a performance ao nível do inconsciente. O condicionamento comportamental invocado pelo conhecimento da presença da câmara é tão natural como o pestanejar. Barthes descreve este comportamento como a “retórica da pose” - uma experiência constrangedora e quase sobrenatural, e que fundamenta aquilo que este ensaio pretende sublinhar: existe, de facto, uma alteração de comportamento na presença de uma máquina fotográfica.


Bibliografia

Baqué, Dominique, La Photographie Plasticienne, l'extrême contemporain, Regard, Essais edition, 2009

Benjamin, Walter, A Obra de Arte Na Época da sua Possibilidade de Reprodução Técnica, in A Modernidade, (trad. João Barrento), Assírio e Alvim, Lisboa, 2004

Barthes, Roland, Camera Lucida, in The Photography Reader, edit by Routleged, London & New York 2003

Goldgerg, Roselle, A Arte da Performance, do Futurismo ao presente, Thames Hudson Ltd, Londres, 1º ed., Lisboa, 2007

Mande-Roxby, Alice, Live Art on Camera: Performance and Photography, John Hansard Gallery, 2007

Medeiros, Margarida, Fotografia e Narcisismo: O auto-retrato contemporâneo, Assírio & Alvim, Novembro, 2000

Phelan, Peggy, Unmarked: the Politics of Performance, Routleged, London & New York, 2006

Tisseron, Serge, L´inconscient de la Photographie, in La Recherche Photographique, Maison européenne de la photographie, Automne 1994, nº 17

Internet
http://www.teatromariamatos.pt/catalogo/detalhes_produto.php?id=288

Anexos























1.Gina Pane Action Sentimentale

















2. Chris Burden Shot















3. Cindy Sherman Untitle Film Still # 10

















4. Nicolas Nixon, The Brown Sisters
















5. Ana Borralho e João Galante Untitle Still. Life






[i] No presente ensaio pretende-se dar ênfase à prática fotográfica dentro do género da performance, no entanto, muitos destes assuntos poderiam ter uma abordagem similar relativamente ao vídeo. Assim, a falta de referência a este meio é propositada, mas deve-se ter em conta que o vídeo foi paralelamente usado como objecto performativo e documental.
[ii] Roselle Goldgerg, A Arte da Performance, do Futurismo ao presente, 2007, pág. 23
[iii] Mande-Roxby, Live Art on Camera: Performance and Photography, 2007, pág. 3.
[iv] Alice Mande-Roxby, idem, pág. 33.
[v] Dominique Baqué, La Photographie Plasticienne, l'extrême contemporain, 2009, pág. 7
[vi] O mesmo aconteceu com a LandArt que, tal como a performance, implicava diversas dificuldades ao nível da sua representação museológica e foi, também, pela documentação fotográfica que se dá a conhecer ao público dos museus.
[vii] Margarida Medeiros, Fotografia e narcisismo: O auto-retrato contemporâneo, 2000, pág. 113
[viii] Peggy Phelan, Unmarked: the Politics of Performance, 2006, pág. 64.
[ix] Henry M. Sayre, The Object of performance: the American Avant-Garde since 1970, pág. 65
[x] Henry M. Sayre, idem, pág. 65.
[xi] Expressão usada por Freud na psicanálise e recuperada por Jacques Derrida em The Archive Fever.
[xii] Walter Benjamin, A Obra de Arte Na Época da sua Possibilidade de Reprodução Técnica, in A Modernidade, pág. 218
[xiii] Henry M. Sayre, The Object of performance: the American Avant-Garde since 1970, pág. 65
[xiv] Roland Barthes, Camera Lucida, in The Photography Reader, págs. 22 e 23.
[xv] Peggy Phelan, Unmarked: the Politics of Performance, 2006, pág. 35.
[xvi] Peggy Phelan, idem, 2006, pág. 35.
[xvii] Medeiros, Margarida, idem, pág. 81
[xviii] Sitio - Teatro Maria Matos, http://www.teatromariamatos.pt/catalogo/detalhes_produto.php?id=288
[xix] Phelan, Peggy, Unmarked: the Politics of Performance, 2006, pág. 37.
[xx][xx] Tisseron, Serge, L´inconscient de la Photographie, in La Recherche Photographique, Maison européenne de la photographie, Automme 1994, nº 17, pág. 84

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