domingo, 1 de abril de 2012

“The Girl in the Magnesium Dress”






Quando crianças pensamos que, com um salto muito alto, conseguimos chegar aos céus.
De uma mesma maneira, e retomando esta ingenuidade e memória de infância,  o salto, a deslocação, o impulso,  foi o ponto de partida que permitiu à artista estabelecer um paralelo com o tema da Assumpção da Virgem Maria (a sua elevação aos céus em corpo e alma depois da morte terrena), um dogma da igreja católica.
 “The Girl in the Magnesium Dress”[1] é uma obra metafórica que, de algum modo ligada à ideia de dogma, constitui-se como uma reflexão sobre o desejo, o tempo, e sobre a impossibilidade.

Essa impossibilidade é materializada no salto, como forma de alcançar, como uma tentativa da conquista de um outro estado, numa inquietação de desejo e ânsia de mudança.

No entanto sabemos que o salto, mesmo hipoteticamente fazendo uso da leveza de um vestido de magnésio, apenas nos transporta ao ponto de partida. Não há transfiguração. A dimensão do real não nos deixa inscrever no imaginário. Que fazer então?

É aqui que começa o trabalho da artista que, usando a fotografia e o vídeo, explora processos de fraccionamento em dois espaços diferenciados mas complementares na compreensão de uma dimensão narrativa

Numa primeira abordagem esse desejo de mudança de estado é sublimado por um trânsito constante, por um limbo entre estados que a imagem fotográfica consegue fixar e que a sua rápida repetição pretende dar-lhe a força e a energia que precisa para ultrapassar essa condição estática mas que, de uma maneira deceptiva, só consegue prolongar esse estado entre mundos, entre espaços, na representação de uma espécie de suspensão do desejo na suspensão do olhar.

Num segundo espaço, mais íntimo, a autora muda a sua estratégia. Agora trabalha a imagem fixa, ou aparentemente fixa, já que é na lentidão da imagem quase fixa que o movimento se vai configurando e a personagem ascende finalmente de um ponto ao outro, porém imperceptivelmente.

E é neste jogo de paradoxos e enganos entre imagem fixa e em movimento, entre a interioridade e a performatividade, que se desenha uma possível solução para este dilema da procura que talvez passe pela rendição aos fluxos das transições nesse mundo entre mundos, sem ansiedade e sem desejo de mudança, apenas existindo na singularidade de cada momento per si.


José Oliveira


[1] “The Girl in the Magnesium Dress” é um título apropriado da obra homónima de Frank Zappa, executada pela primeira vez em 1974, e que faz parte do último álbum gravado em vida deste compositor.

Constitui este tema igualmente a banda sonora que, em loop, estabelece o ambiente sonoro do desenvolvimento da instalação de Sara Magno.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012


Estratégias de representação no auto-retrato contemporâneo

Nota introdutória

Este trabalho pretende ser um comentário acerca do auto-retrato na contemporaneidade. Para isso, serão levantadas várias questões ao longo desta reflexão e, ao mesmo tempo, serão expostos vários exemplos de artistas no sentido de dar resposta a essas mesmas questões.
A primeira dúvida acerca do auto-retrato consiste na possibilidade, ou impossibilidade, de realização de uma identidade. Para dar resposta a esta questão procurámos artistas como Nadar e Mapplethorpe. Num segundo momento, questionámo-nos acerca do corpo e a forma como a sua ausência ou a sua presença se relaciona com a questão da identidade. Neste sentido, analisámos os artistas Ana Mandieta e John Coplans.
No seguimento, os autores Hippolyte Bayard, Marcel Duchamp, Jorge Molder, Dita Pepe, Yasuma Morimura, Niki S. Lee, Jeff Koons e Jürgen Klauke vêm dar corpo à questão da máscara e do disfarce levando-nos a posicionar o autor como um actor.
A representação foi um motivo para abordar o assunto da performance, dentro do contexto do auto-retrato e da fotografia, e conduziu-nos a artistas como Melanie Manchot, Emima Stehli, Helena Almeida e Arnulf Rainer. Por fim, deixámos espaço para abordar o factor tempo e movimento no auto-retrato contemporâneo e falarmos dos artistas Bruce Nauman, Bill Viola e Vito Acconci.
Estes artistas foram escolhidos como sendo paradigmáticos deste tema. No entanto, não será demais referir que muitos outros exemplos foram encontrados ao longo desta investigação, deixando assim em aberto outras possibilidades de leituras sobre o mesmo assunto.

1. Será a estratégia de representação uma busca pela identidade ou apenas um instrumento de expressão artística?

Tomemos como exemplo um dos primeiros auto-retratos da história da fotografia: o de Nadar. Num dos seus auto-retratos o fotógrafo faz-se representar como um boémio de Paris [anexo 1], noutro Nadar aparece-nos numas catacumbas de Paris junto a uma parede com caveiras, num ambiente reflexivo, um verdadeiro memento mori. [anexo 2]
Fará sentido questionar qual dos dois é realmente Nadar?
O autor que pretende auto-representar-se procura, numa primeira instância, resumir a sua história e o seu carácter de forma a aproximar-se da sua identidade. Mas, desde o inicio, houve o constrangimento de escolher o momento que pode sintetizar toda essa informação.
Durante o pós-modernismo vários artistas criaram formas de desmultiplicação da identidade. Cindy Sherman é um dos melhores e mais conhecidos exemplos, mas também Mapplethorp é um artista essencial para perceber a necessidade de multiplicação da identidade através da representação de vários papeis.

Numa fotografia de 1878, Mapplethorp, faz-se representar de costas olhando fixamente a câmara sobre o ombro exibindo uma cauda diabólica, possivelmente um instrumento sadomasoquista, que sai do seu ânus [anexo 3]. Em 1988, o artista apresenta-se olhando fixamente em frente sobre um fundo intensamente escuro e uma mão apoiada sobre um objecto em forma de caveira [anexo 4]. Tal como nos auto-retratos de Nadar, Mapplethorp faz-se representar de formas diferentes em momentos diferentes construindo uma analogia com um momento particular da sua vida. Assim sendo, o que vemos é a utilização táctica da fotografia com um propósito autobiográfico com recurso à representação, sem que seja possível, no entanto, clarificar um aspecto geral do carácter do retratado. Sendo impossível destacar a natureza do retratado do personagem, consideramos conveniente fazer um inventário do tipo de representação mais frequente no auto-retrato contemporâneo através da leitura de vários exemplos, para definir quais as estratégias que este assume ao longo do tempo.

2. A representação do corpo

O caso particular de Ana Mandieta leva-nos para um domínio da representação onde o corpo é um local de sacrifício. Como, por exemplo, em Rape Scene [Anexo 5] as marcas impressas no corpo implicam uma certa violência sobre o mesmo. Este lado sacrificial caracteriza uma forte tendência no seu trabalho, mas a artista utiliza, também a própria ausência do seu corpo. A artista deixa apenas um rasto ou uma silhueta que implica a sua presença física como um índex, ou seja, como resultado da acção do seu corpo sobre uma superfície, provando desta forma a sua existência [Anexo 6 e 7]. Precedentes a este trabalho poderão ser encontrados facilmente em retratos do século XVIII, ou anteriores, que consistiam na prática de fixar a sombra do perfil sobre uma superfície como a madeira ou o metali.

É igualmente interessante ver que alguns artistas procuram uma construção da sua identidade através da fragmentação do corpo. Pelo isolamento do corpo dentro das margens da fotografia e pelo trabalho continuado em série, o artista Jonh Coplans é um dos possíveis exemplos para compreender esta tendência. A apresentação invulgar do seu corpo repartido por mãos, pés, joelhos, torso, costas, etc., [Anexos 8, 9, 10 e 11] tece uma linguagem que sugere uma constante busca do seu retrato. Ao mesmo tempo, o artista opta pela estratégia de manter omissa a face que seria, dentro de uma clássica representação da sua identidade, um elemento imprescindível.

Este facto sugere que o fotógrafo contemporâneo compreendeu que a veracidade fotográfica não é proporcional na relação da realidade da imagem capturada com a subjectividade psicológica do retratado. Por isso, o auto-retrato fotográfico contemporâneo já não possui a mesma objectividade herdada do retrato pictórico, optando antes pelo jogo ilusório e aproximando-se do teatro no sentido em que o artista se torna um performer perante a câmara. Se o objecto fotográfico limita a leitura de carácter, então a tendência será não contrariar esta realidade, mas sim usá-la como potencial para outras leituras. Para Margarida Medeiros, esta relação torna-se clara quando a “possibilidade de construir cenários, como se de instantes da vida se tratasse, veio mostrar como a fotografia é, também, um dispositivo propício à reinvenção de papéis”ii. A tendência será, então, a da representação em detrimento da abordagem paradigmática de Mandieta e de Coplans que sugerem ainda uma preocupação romântica com questões relacionadas com a identidade.

3. O fotógrafo/actor

Não é verdadeiramente nova a questão do disfarce e da representação para a câmara fotográfica. Podemos ir buscar um exemplo de um auto-retrato de 1840. O fotógrafo pioneiro Hippolyte Bayard fez-se representar como um afogado [Anexo 12]. O autor simula a sua morte representando-se como um corpo morto através de uma imagem fotográfica como protesto ao facto das autoridades francesas terem reconhecido a Daguerre as descobertas fotográficas em vez de a si próprio. Mas, ironicamente, imortalizou o facto de ser o primeiro auto-retrato da história da fotografia. É interessante a relação que Susan Bright faz entre o auto-retrato de Bayard e o de Gavin Turk [Auto Focus, pag. 8, 2010]. Portrait of something that i never really see, é o título do auto-retrato de 1997 [Anexo 13]. O artista aparentemente está morto. Os olhos fechados do artista aumentam a subjectividade do seu próprio retrato confundido a leitura do observador.

Continuando o percurso da representação encontramos nesta investigação os retratos do artista surrealista Man Ray de Marcel Duchamp no papel do seu alter-ego feminino, em 1923. Duchamp en femme [Anexo 14] e Rrose Sélavy [Anexo 15], são dois retratos frequentemente referidos dentro do contexto da obra de Duchamp, inclusivamente mais do que no contexto da obra de Man Ray. Estes retratos implicam a consciência da questão do jogo ilusório e linguístico, bem como a veracidade do objecto fotográfico, abrindo portas na contemporaneidade para outros artistas continuarem a desenvolver artisticamente o assunto relacionado com este precedente. [Duchamp´s Masquerades in The portrait in photography, 2002]. O que vemos são novos artistas que não estão preocupados em ser eles próprios, mas sim em adoptar uma máscara que diga algo acerca do mundo numa escala maior e acerca da fotografia integrada nesse mesmo mundo. Uma das mais célebres frases de Roland Barthes é que não será pela Pintura que a Fotografia toca a arte, mas pelo Teatro [Camera Lucida, in The Photography Reader, págs. 27, 2003].
Nesta ultima década, temos assistido ao ressurgimento de vários artistas que adoptaram a estratégia da máscara no sentido de explorar aspectos das identidades pessoais e nacionais. Os artistas podem usar a máscara como uma camada que protege a sua própria identidade permitindo que “outras vozes se façam ouvir” e por isso a representação tem sido muitas vezes usada como uma estratégia para um discurso mais politizado.

Eu não sou eu
nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o outro.

Mario de Sá-Carneiro, Lisboa 1914

A máscara oferece um poderoso disfarce que dá aos fotógrafos a oportunidade de explorar, redefinir e desafiar a forma como o conceito de identidade tem sido representado e entendido. Este poema de Sá-Carneiro sublinha a dificuldade em encontrar apenas uma identidade em cada pessoa e destaca a permeabilidade que existe entre nós e os outros, como se dependesse de uma escolha nossa, sermos o que quisermos. Roland Barthes considera ainda o poder do próprio dispositivo da câmara como um factor perturbador da personalidade que naturalmente obriga a assumir uma pose ou uma personagem perante ela.iii

O processo de invenção de um personagem no caso de Jorge Molder é análogo àquele usado na literatura em que o autor se transfigura numa das suas personagens ou no narrador. A fotografia é construída a partir do processo narrativo dentro de outro campo referencial, que não é fotográfico, é literárioiv. A sua obra é vasta, por isso foquemo-nos apenas num trabalho paradigmático: Anatomia e Boxe [Anexo 16, 17, 18 e 19]. Num catálogo de uma exposição deste trabalho, Delfim Sardo, reporta-nos para uma “analogia entre o
teatro anatómico e o ringue de boxe, entendidos como os dois últimos locais do espectáculo da manipulação e transformação do corpo”. [Jorge Molder: O Espelho Duplo, pág. 12, 2005]. Há uma metamorfose de imagem para imagem ao longo da série de 43 retratos: um jogo de tensão e distensão concentrada na face que lembra, de alguma forma, o auto-retrato de Bacon. Mas, apesar de reconhecermos a face de Molder, não é o autor que vemos, mas um personagem por ele criado. Tal como no teatro, o actor assume o seu papel e é tão melhor actor quanto menos de si próprio virmos e mais da personagem que está a representar. Não é uma questão de auto-representação como muitos autores gostam de chamar a estes auto-retratos, mas sim, simplesmente, uma questão de representação. O autor está a representar um papel, ele assume esse papel e deixa de ser ele próprio. Isto é, ele não está a representar-se a ele próprio, mas sim a um outro, uma outra identidade.

De uma forma diferente, outros artistas trataram do mesmo assunto. É o caso de Dita Pepe, Yasuma Morimura, Niki S. Lee, Jeff Koons ou Jürgen Klauke, entre muitos. Na série Self Portrait with Men, [Anexo 20 e 21], a artista Checa, Dita Pepe, imagina-se na pele de outras mulheres e faz-se representar com outros homens usando a estética do álbum de família e recriando ambientes que normalmente encontramos nessas imagens, como casamentos, festas de anos, férias, etc. O aspecto vulgar das imagens tornam-nas ainda mais credíveis. No entanto, o que a artista faz é representar um papel, ela entra na pele de outra pessoa e representa-a.

Morimura usa a mesma estratégia de disfarce de Cindy Sherman. O autor esconde-se atrás da máscara, torna-se irreconhecível e tal como um agente secreto num filme de ficção faz-se passar por outra pessoa. No caso de Morimura são as pessoas que o autor pretende representar que vão construir o seu discurso artístico que de alguma forma abrange uma crítica política e social. As suas referências vão desde artistas como Frida Kahlo a políticos como Mao ou Che Guevara [Anexo 22 e 23].
Nikki S. Lee preocupa-se com questões relacionadas com a raça, grupos sociais e género. O seu disfarce passa pela produção de várias identidades que podemos encontrar nas séries The Hispanic Project, The Skateboarders Project, The Yuppie Project, The Hip Hop Project. [Anexo 24]Em cada projecto a autora assume o estilo e a roupa e faz-se acompanhar pela própria comunidade que representa.
Jeff Koons é a personagem principal dos cartazes dos filmes que produz [Anexo 25] e os auto-retratos de Jürgen Klauke representam o fetichismo e ficção que habita a imaginação do autor [Anexo 26]. Todos estes exemplos referidos aqui de forma breve servem para justificar esta ideia de representação que vimos desde o início a tecer e demonstram as variadíssimas possibilidades que o auto-retrato pode conter como ponto de partida para um projecto artístico.

Podemos, então, através destes exemplos tão diferentes compreender e analisar esta tendência para o disfarce com o intuito de comunicar através de um outro, de uma outra personalidade que não a própria. Seria pertinente questionar se este disfarce funcionaria caso o artista utiliza-se outro corpo que não o seu para chegar ao mesmo propósito? Será que perderia a sua intensidade? Eventualmente, esta pergunta de retórica leva-nos à conclusão de que a centralidade destes retratos no artista proporciona a sua leitura a partir de um referente. Apesar de o autor desistir da busca da sua própria identidade é pelas suas referências e pela observação do outro que ele constrói o seu discurso artístico. E para concluir esta questão poderá ser útil introduzir um último exemplo: Ryan Weideman um fotógrafo da década de oitenta que se retrata dentro do seu táxi juntamente com os passeiros que transporta [Anexo 27]. Torna-se evidente que, para Weideman, é importante a captação do ambiente que o envolve diariamente como referente e instrumento para a construção do seu projecto artístico.

4. O auto-retrato dentro do contexto da performance artística

O conceito de performance sempre esteve associado às artes cénicas, à ideia de encenação e de representação. No entanto, outras técnicas artísticas aproximam-se pela afinidade no tipo de linguagem. A relação entre fotografia e performance torna-se mais estreita quando o próprio performer a usa como objecto de representação. Nesse processo, o artista que domina a prática fotográfica volta a câmara para si e encena uma acção cujo resultado é dado a conhecer ao público apenas pelo meio fotográfico.
Encontramos vários exemplos de artistas performativos que usam a fotografia não só como forma de documentar o acto performativo, mas também como fim, ou seja, a própria performance é construída a partir do intuito da sua captação fotográfica. Para a questão do auto-retrato, é importante distinguir os artistas que usam a fotografia para documentar a sua performance dos artistas cuja performance implica uma reflexão acerca da relação do meio fotográfico com o seu corpo. Neste caso, influencia a forma como os artistas conduzem as suas performances para que o resultado seja mais fotogénico e auto-consciente.

A obra fotográfica de Melanie Manchot e Emima Stehli são dois relevantes exemplos para ilustrar o tema. Na série Gestures of Demarcation, [Anexo 28 e 29] de 2001, Manchot planeia uma coreografia para câmara imitando a estética das fotografias de performances dos anos 1960 e 1970, sendo que, neste caso, todas as acções são pensadas numa perspectiva fotográfica. No seu trabalho, a artista inclui uma segunda pessoa que se compromete a aplicar sobre o corpo da autora uma extensão da sua pele. A parte do corpo e a tensão aplicada é inteiramente da responsabilidade da outra pessoa e o controlo sobre o resultado final já não passa pela autora criando aqui um jogo de poder e controlo.

De uma forma diferente também a artista Emima Stehli perde o controlo do resultado das suas imagens quando delega numa segunda pessoa o aparelho de disparo da câmara. Na série Strip, de 1999, [Anexo 30 e 31] a autora predispõe-se a despir-se perante vários homens dentro da comunidade artística inglesa, colocando ao seu dispor um dispositivo que dispara a máquina fotográfica ficando à sua responsabilidade o momento registado da performance da artista. Para além de um comentário ao poder do género masculino dentro do circuito da arte, ele é também um retrato da artista e da frágil relação que existe entre artistas, críticos e galeristas.

Pode também ser interessante voltar atrás no tempo e referir dois nomes: Arnulf Rainer e Helena Almeida, que na década de setenta parecem estabelecer uma interessante relação entre a performance fotográfica e a performance implícita no acto de pintar. Se tivermos em consideração as respectivas séries, Face Farses e Pintura Habitada, [Anexo 32 e 33], podemos ver que ambos os artistas se posicionam em relação à câmara em prol de gesto seguinte que é a pintura. Em ambos os casos temos uma performance consciente assim como é também consciente a manipulação que posteriormente é incluída na peça. Estes gestos fecham um círculo performativo entre a pintura e a fotografia e enfatizam a acção do corpo no contexto artístico que resultava da bodyart da década anterior [Helena Almeida – persona dramática mas lúcida, pág. 27, 1995].
Através destes exemplos podemos compreender a tendência da arte contemporânea em juntar géneros e estilos de forma a complementar e acrescentar alguma novidade ao tema. Os projectos performativos ganham força dentro do discurso contemporâneo e a fotografia e o auto-retrato naturalmente se associam para consumar de um discurso sobre o corpo.

5. O Auto-Retrato em movimento

Tal como a fotografia em relação à pintura, o vídeo veio acrescentar à fotografia algo de novo, designadamente no que se refere ao auto-retrato contemporâneo. Partindo de uma perspectiva fotográfica, a apresentação em vídeo permite captar uma acção em movimento. Tendo ultrapassado a questão da representação da identidade, o artista foca-se em questões de facto artísticas. Os seguintes artistas, Bruce Nauman, Bill Viola e Vito Acconci possuem, dentro das suas extensas obras videográficas, exemplos paradigmáticos para o auto-retrato em movimento.

Nauman é um artista que vai explorar a sua corporalidade no espaço. O ateliê é para qualquer artista um espaço de performance artística, mas Nauman leva esta evidência ao extremo, construindo um auto-retrato a partir da captura videográfica das suas acções no seu local de trabalho. A ideia é simples: as suas acções, a sua rotina, qualquer tarefa realizada no seu ateliê, converte-se em arte, o próprio artista converte-se em arte v. O que vemos é o artista aparecer e desaparecer do plano fixo da câmara dentro do espaço do ateliê perpetuando a sua evolução artística e inaugurando uma espécie de auto-retrato em movimento.
Para o artista contemporâneo a câmara de vídeo tornou-se um espelho. A possibilidade de gravação do movimento conduziu à evolução do auto-retrato e à concentração na expêriencia do corpo através da autoscopiavi, ou seja, a capacidade de explorar a nossa própria imagem. O vídeo viria a dar continuidade ao que o psicanalista Jacques Lacan chamou a fase do espelhovii. Sendo o espelho determinante para a criação da identidade, também o vídeo viria a incrementar a possibilidade de auto-observação, logo, iria influenciar a formação do Eu. Desta forma, o vídeo veio acrescentar artisticamente uma série de faculdades ao auto-retrato.

O projecto Reasons for knocking at an empty house, de Bill Viola, é um exemplo famoso em que o artista se submete a três dias fechado dentro de uma casa com uma câmara de vigilância que iria gravar todas as suas acções. As reacções do corpo ao facto de não poder dormir e à clausura a que o artista se obrigou só podem ser entendidas através do tempo, que é outro factor relevante para perceber a importância do vídeo para o auto-retrato. Enquanto a fotografia se restringe a um momento isolado, o vídeo pode conter vários momentos que mostram a transformação do corpo no tempo.

Vito Acconci é outro artista cuja estratégia passa pelo teste dos limites da sua corporalidade através dos limites do próprio vídeo. Em Running Tape e em Three Frame Studios, o artista recorre a duas estratégias diferentes de testar estes limites. No primeiro, Acconci, grava os seus passos à medida que anda por Nova Iorque fazendo uma contagem dos mesmos, confrontando os limites do seu corpo com o limite da fita do filme. No segundo, ele vai disputar o enquadramento do filme com um actor lutando pelo “espaço” da gravação.

O que vemos nestas obras são os primórdios da vídeo arte nos finais da década de sessenta e princípios da de setenta, em que os artistas que usam o vídeo começam essencialmente por explorar todas as capacidades do novo instrumento. Com o advento das artes digitais, outras possibilidades foram criadas, mas mantêm-se questões fundamentais como a relação entre o tempo, o espaço e a corporalidade.

Conclusão

Raro é o artista que nunca fez um auto-retrato. Em qualquer retrato vemos sinais, traços ou a presença do artista que o fez, vemos os seus gostos e as suas fraquezas, mas num auto-retrato a sua presença é ainda mais evidente. No auto-retrato, o artista/modelo tem liberdade total e o seu trabalho ganha uma dimensão experimental que dificilmente conseguiria com outras pessoas. A fotografia revelou ter a linguagem e as condições adequadas para dar continuidade à prática do auto-retrato, pelo seu constante referente à realidade e ao mesmo tempo pela sua subjectividade. O auto-retrato tornou-se um meio de pesquisa e um género autónomo dentro da fotografia.

Analisámos várias estratégias para a representação no que concerne ao auto-retrato, tais como, a presença ou ausência do corpo, a mascara ou disfarce, a performance e o vídeo. Encontrámos, por vezes, a representação da face ou só do corpo, um fragmento ou a construção de um todo a partir de fragmentos, a sua ausência, ou simplesmente um gesto. Noutros casos, testemunhamos uma desconstrução ou alteração da identidade original no sentido de se transformar noutra coisa. Vários caminhos que se reúnem num ponto de partida auto-referencial e que se desmultiplicam num variadíssimo potencial artístico. Através destes exemplos de fotógrafos dentro do contexto da contemporaneidade chegámos à conclusão de que não existe auto-retrato sem alguma forma de fabricação artificial de uma ou várias personalidades.

Notas

i Na revista madrilena Exit nº10, há uma referência interessante, contudo deveras exagerada, ao trabalho de Ana Mandieta e à forma como este se relaciona com o seu suicídio. Para o autor, António Juan Ramírez, este último acto da artista é o seu mais radical auto-retrato que implica a marca do impacto do seu próprio corpo no chão ao atirar-se de uma janela, imitando o famoso salto de Yves Klein. “I wish on the artistic nature of this suicide, and n its relation to photographic technique: if this medium is entirely based on the impression f light on the surface plane of the negative, here too the artists ‘physical body leaves a physical and indelible print on the surface of the ground. (…) I believe that her final gesture is, as we already said, the best and most radical metaphor of the photographic we can find.” [Exit, Ramirez, Juan, pág. 32, 2003]
ii Margarida Medeiros, Fotografia e narcisismo: O auto-retrato contemporâneo, 2000, pág. 113
iii “Assim que me sinto observado pela lente, tudo muda: eu considero-me num processo de ´pose`, instantaneamente crio outro corpo para mim, transformo-me progressivamente em imagem. (…) À frente da lente, eu sou ao mesmo tempo: aquele que penso que sou, aquele que pretendo que os outros pensem que sou, aquele que o fotógrafo pensa que sou e aquele que o fotógrafo faz uso para exibir a sua arte”. Roland Barthes, Camera Lucida, in The Photography Reader, págs. 22 e 23.
iv Esta ideia vem da questão do referente psicológico referida neste excerto: “The character Molder has invented, who may not always be exactly the same one, has nevertheless the Artaudian or Pessoan stature of the double. From the beginning, it is built as the subject´s alterity or schize, precisely by not maintaining the psychological mark of its referent – the author/actor – disengaging himself in order to gain a life of his own.” *Exit, Almeida, Bernardo Pinto, pág. 74, 2003]
v Acerca do assunto citamos uma declaração de Bruce Nauman, compilada por Neal Beneza no seu artigo: Bruce Nauman en perspective, no catálogo da exposição no Museu Rainha Sofia, Madrid, em 1994, pág. 28 *in Exit, pág. 124, 2003+ “Back then, I didn´t have any support structure for my art, ... didn´t have the chance to talk about my work. And a whole bunch of things I was doing didn´t make any sense, so I gave up doing them. That leave me alone in my studio; and raised the fundamental question: what is it that an artist does when he is left alone in his studio? My conclusion was that if I was an artist and I was in the studio, then everything I was doing in the studio should be art... From that point on, art became more of an activity and less of a product.”
vi Scopia, do grego skopéo, contemplar, olhar. Exprime a noção de observação. [do dicionário Priberam da Língua Portuguesa]
vii Jacques Lacan in Art in theory, 1900-1990, pág. 620, 1993

Bibliografia

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Artigos

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Catálogos de Exposições

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MOLDER, Jorge, introd. Siza, Maria Teresa, Anatomia e Boxe, anatomy and boxing, Centro Português de Fotografia, Porto, 1997 (Obra publicada por ocasião da exposição patente no edifício da Cadeia e Tribunal de Relação do Porto, sede do Centro Português de Fotografia; exposição organizada pelo Centro Português de Fotografia)

Internet

Dicionário Priberam da Lingua Portuguesa, http://www.priberam.pt/

Bruce Nauman video, Walking in an Exaggerated Manner around the perimeter of a square, 1967-68: youtube_ http://www.youtube.com/watch?v=Qml505hxp_c

Anexos

(todas as imagens são provenientes da internet)

Anexo 1: Nadar. Self Portrait, 1856–58
Anexo 3: Mapplethorpe. Self-Portrait with Bullwhip, 1978
Anexo 2: Nadar. Self Portrait nas
catacumbas de Paris, ?
Anexo 4: Mapplethorpe. Self-Portrait, 1988
Anexo 7: Ana Mandieta. Untitled silueta series,1978
Anexo 5: Ana Mandieta. Rape Scene, 1973
Anexo 6: Ana Mandieta. Untitled silueta series,1978
Anexo 8: John Coplans. Self Portrait, Hands on knees, 1984
Anexo 10: John Coplans. . Self-Portrait, 1984
Anexo 9: John Coplans. Self Portrait Hands spread Fingers, 1987
Anexo 11: John Coplans. Self-Portrait, Torso, 1984
Anexo 12: Hippolyte Bayard. Self Portrait as a Drowned Man, 1840
Anexo 14: Man Ray. Duchamp en femme, 1921
Anexo 13: Gavin Turk. Self Portrait, portrait of something that i never really see, 1997
Anexo 15: Man Ray. Duchamp, Rrose Sélavy, 1921
Anexo 16: Jorge Molder. Anatomia e Boxe, 1996
Anexo 18: Jorge Molder. Anatomia e Boxe, 1996
Anexo 17: Jorge Molder. Anatomia e Boxe, 1996
Anexo 19: Jorge Molder. Anatomia e Boxe, 1996
Anexo 20: Dita Pepe. Self-Portraits with men, 1999-2008
Anexo 22: Yasuma Morimura. ‘For Frida 1’ from the series ‘On Self-Portrait - Through the Looking-Glass’, 2001
Anexo 21: Dita Pepe. Self-Portraits with men, 1999-2008
Anexo 23: Yasuma Morimura. Self Portrait as Marilyn Monroe, 1995
Anexo 23: Nikki S. Lee. The Hispanic
Project, 1998
Anexo 25: Jürgen Klauke. Transformer, ?
Anexo 24: Jeff Koons. Self-Portraits, Advertisement in Flash Art International, December 1988
Anexo 27: Ryan Weideman. Self-Portrait with Passengers Tossing Money 1985
Anexo 28: Melanie Manchot. Detail from Gestures of Demarcation IV, 2001
Anexo 30: Jemima Steh. Strip, 2001
Anexo 29: Melanie Manchot. Gestures of
Demarcation V, 2001
Anexo 31: Jemima Steh. Strip, 2001
Anexo 32: Arnulf Rainer. Face farses, 1973
Anexo 34: Bruce Nauman. Walking in an Exaggerated Manner around the Perimeter of a Square, (filmstill) 1967-68
Anexo 33: Helena Almeida. Pintura
Habitada, 1975
Anexo 35: Bill Viola. Reasons for knocking at an empty house, (filmstill) 1983
Anexo 36: Vitto Acconci. Running Tape, (filmstill) 1969
Anexo 37: Vitto Acconci. Three Frame Studies, (filmstill) 1969-70

Marcel Duchamp: The Creative Act

Este texto foi escrito por Duchamp em Abril de 1957 no âmbito de várias conferências sobre arte em Hoston, nos Estados Unidos e fala essencialmente sobre o processo criativo. O texto começa por colocar o artista num plano mediúnico, que está fora de qualquer plano estético e que procura uma espécie de esclarecimento através de um processo intuitivo. A obra de arte que é produzida dentro destes contornos será então sujeita a um veredicto do público que irá determinar o valor social dessa obra. Nesta fase o artista deixa de ter qualquer controlo sobre a sua obra e esta fica à mercê da crítica do espectador.

O artista, ou o escritor neste caso, procura em seguida, uma definição de arte. É interessante neste ponto relembrar uma entrevista escrita a Marcel Duchamp com o título d´ O Engenheiro do Tempo Perdido em que ele diz: “não acredito na função criativa do artista (…) por outro lado a palavra arte interessa-me muito. (…) Antigamente, eles eram designados por uma palavra que prefiro: artesãos. (…) A palavra artista foi inventada quando o pintor se transformou num personagem.” Mais à frente o artista refere a sua paixão pelo xadrez e continua a sua indagação sobre o meio artísticos da seguinte forma: “(…) o meio dos jogadores de xadrez é bem mais simpático que o dos artistas. Estes são completamente confusos, completamente cegos, usam viseira de burro. São loucos de certa natureza, como se esperava que eles sejam; mas não o são em geral. Isso foi o que provavelmente mais me interessou.” É sob este olhar crítico que Duchamp defende no seu texto the creative act, a introdução de um coeficiente artístico. Ou seja, a existência de alguma coisa que se situa entre a intenção e a realização final da obra e que tem uma relação directa com aquilo que não está explicito, mas é intencional e aquilo que não é intencional, mas está explicito. São nestas entrelinhas que o espectador pode definir a escala estética da obra e acrescentar a sua leitura individual tal como uma obra aberta. E assim o acto criativo não é um acto solitário, mas sim, construído sob o binómio artista-espectador.

Neste texto podemos subentender a qualidade radical do pensamento de Duchamp que veio redefinir todo o fazer artístico do seu tempo. A sua atitude irreverente inspirada pelo convívio com os dadaístas é uma procura constante por desconstruir qualquer tipo de ordem. Na sua produção em particular encontramos o Grand Vérre, por exemplo, que desafia o acaso e transforma a arte num jogo, num enigma. Ao mesmo tempo, com os ready-made, torna-se possível transferir objectos do quotidiano para o campo extraordinário da arte. E, não é certamente por questões estéticas que Duchamp mais se debruça na sua criação, mas sim no campo da linguagem e das mediações que apelam à imaginação.

Sara Magno

David Summers: One Representation

David Summers procura neste ensaio construir um esquema histórico para o problema da representação para dar sentido àquilo que no final vai defender: a prioridade histórica da imagem mental. Rapidamente o autor passa sobre a questão da representação estar relacionada com semelhança ou imitação para referir três factores associados ao assunto: o objecto, a sua imagem real e a imagem mental que fazemos dele. A percepção deste objecto é-nos mediada pelos sentidos e interpretada pela psyche. Segundo Platão, a realidade é mediada e não imediata o que implica a constituição de conceitos como ideia e fantasia ou imaginação. A visão é o sentido que mais se aproxima da forma mental e, associado à memória, constitui uma das principais fontes de informação para a representação no campo da arte. Tal como as palavras ou os signos, as imagens não reproduzem todas as qualidades daquilo que mostram, mas funcionam como índex - aquilo que Aristóteles referia como traço ou marca. Assim, um retrato não se pode assemelhar ao carácter, mas é uma manifestação deste.

Outra forma de abordar a representação seria através do conceito de equivalência, ou seja, uma representação pode ser algo que possui igual força ou valor, por exemplo, as palavras não podem recriar, mas podem fundir-se com a memória e com a emoção para constituir uma força equivalente na imaginação. O conceito de equivalência veio suprir a ideia de que uma representação é uma substituição ou uma semelhança como inicialmente poderíamos pensar. A representação é como um símbolo que apresenta outra coisa que não ele próprio.

Desde a época medieval a imagem ganha um sentido metafórico, torna-se uma alegoria, torna-se simbólica. Na linguagem matemática a representação pode ser uma relação, como no exemplo que o autor nos dá, o mercúrio de um termómetro representa uma temperatura. Na pintura a introdução da perspectiva coloca as figuras em relação com o espaço. A perspectiva indicia a representação dessas mesmas relações tal como uma metáfora, um ponto de vista subjectivo. Francis Bacon é referido no ensaio por ter introduzido uma visão moderna e revolucionária. Segundo o filósofo, existe um erro prejudicial na construção de uma forma mental metafórica, pois a mente humana cria ficções como um falso espelho que mistura e distorce imagens. Esta forma empírica de percepção do mundo não se aplica a todas as ciências. A representação torna-se então a imaginação de uma ordem da qual necessitamos.

Decartes definiu ideias como pensamentos que são imagens de coisas, ou seja, imagens geradas mentalmente, pois não há nada nos objectos que seja semelhante à ideia da sensação que temos deles. Segundo o autor esta definição foi continuada por Nietche, Freud e mais tarde por Derrida, associando a memória como capacidade diferencial para retenção de um estímulo. Acerca disto, gostaria de introduzir uma performance recente de Olga de Sotto baseada nas memórias de uma peça de Rolland Pettit, Le Jeune Homme et le Mort, de 1946 visionada por septuagenários actualmente. As memórias dos entrevistados eram descritas como imagens mentais enevoadas e incoerentes entre si, mas as imagens que se geram na imaginação de quem ouve essas mesmas memórias são precisamente as imagens mentais construídas no campo oposto da mente e ambas, sem deixarem de ser imagens mentais, colocam no limite a nossa percepção entre passado, presente e futuro, entre memória e imaginação. De alguma forma, esta estrutura pode aproximar-se da aclamada intuição referida pelos idealistas, mas não saberia onde introduzir a estética de Kant, ou como se poderiam julgar estas imagens. Independentemente do ponto de vista, David Summers remete-nos novamente para uma questão pertinente, as representações são significantes especialmente se tentarmos perceber como e o que é que representa. Recomenda que se olhe para a representação para além da imitação e que se explorem todas as suas possibilidades, problemas e variedades no sentido de tentar perceber como funciona a representação, deixando em aberto que esta interpretação pode funcionar para a cultura ocidental, mas que eventualmente pode escassear para a compreensão noutras culturas.

Sara Magno